Arnaldo B. Christianini
Muitos dos acusados de plagito, na verdade, não o comentaram. Fizeram apenas o empréstimo literário lícito, e não o plágio no strictu sensu, ou seja a pirataria com o texto alheio, movidos pelo animus plagiandi, por dolo, por quererem enganar, e sobretudo faturar sobre o legítimo autor, caracterizando-se o animus lucrandi.
Mesmo na literatura secular explodem amiúde semelhanças de pensamento e texto, que pessoas sem senso crítico consideram indevidamente plágio. E o pior é pretender avaliar as cópias textuais de outros tempos pelos parâmetros das leis de direitos autorais, hoje vigentes.
Camões foi acusado injustamente de plagiário só porque, em “Os Lusíadas” imitou os moldes estruturais da Eneida, de Virgílio. E citam até o verso Arma virumque cano Troiae Qui primus ab oris (Canto a arma e o varão que lá de Tróia…) que é o quinto verso da primeira estância virgiliana, no Livro I. Outro exemplo: Virgílio, no Livro VIII apresenta quatro versos que falam da ação de Enéias, Leucate e Augusto nas chamadas Guerras Actias. Em “Os Lusíadas”, II, 53, Camões praticamente repete esses quatro versos da Eneida. Ninguém deixará de ler e admirar Camões por causa disso, porque foi um procedimento lícito.
Exemplo de empréstimo literário legítimo temo-lo em nosso glorioso Hino Nacional. O poeta Antônio Gonçalves Dias, na sua famosa “Canção do Exílio”, escrita em Coimbra, em 1843, versejou:
“Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores”.
Pois bem! Osório Duque Estrada, em 1906, insere na letra do Hino Nacional os versos de Gonçalves Dias:
“Teus risonhos lindos campos têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida, no teu seio, mais amores”.
Fê-lo para realçar o estilo ufanista, em moda no seu tempo, enriquecendo, assim, a força expressional do hino. Foi, repetimos, um empréstimo literário legítimo. Depois colocaram-se as aspas, mas não há indicação de fonte.
Grande plagiário mesmo teria sido Shakespeare. Um crítico inglês, Molone, em seu livro Literary Curiosities afirma: “Entre 6.043 versos de Shakespeare, 1.777 são tomados integramente de autores precedentes, 2.373 foram modificados. Só os restantes 1.899 pertenceriam totalmente a Shakespeare. Numa pesquisa que fizemos para o preparo de um trabalho desenvolvido sobre o plágio na literatura religiosa, encomendado pela Associação Paulista Oeste, descobrimos quase cem casos de cópias textuais entre os clássicos e escritores famosos de vários países.
O romancista espanhol Juan de Valera, que estudou exaustivamente o assunto, conclui: “A verdadeira e boa originalidade não se perde nem se ganha por copiar pensamentos, ideias e imagens, ou por tomar assuntos de outros autores. A verdadeira originalidade está na pessoa que possui sensibilidade profunda e valor bastante para trasladar no papel e ficar no escrito com que encantado, dando-lhe vida imortal e caráter próprio.” Isto ocorreu e ocorreu com frequência na literatura secular. E na literatura religiosa?
Reportemo-nos à Bíblia. Está repleta de supostos plágios. Moisés incluiu na lei civil judaica pelo menos dois preceitos do Código de Hamurabi, da Babilônia: o que pune com morte o raptor, e a pena de talião, o “olho por olho, dente por dente”. Conferir o código babilônico, itens 14, 196 e 200 com Êxo. 21:16 e Deut. 19:21. No entanto, os preceitos desumanos do mesmo código, Moisés rejeitou. Mas os que incorporou no pentateuco, tornaram-se inspirados, porque “toda Escritura é inspirada por Deus”. II Tim. 3:16.
O mesmo se pode dizer de S. Paulo, que incorporou aos seus escritos pelo menos três poetas pagãos: Arato, Menandro e Epimênides. Leiam-se Atos 17:28; I Cor. 15:33; Tito 1:12. E o pensamento desses autores, depois de registrados nos livros bíblicos, passarem a ser inspirados, porque “toda Escritura é inspirada por Deus”.
Os profetas não eram infalíveis nem receberam de Deus a inspiração verbal. O fato é que Deus os usa com suas carências culturais e, na elaboração da mensagem, o profeta pode utilizar-se do material disponível e até do concurso de terceiros. E ele é guiado pelo Espírito Santo a escolher um texto e incorporá-lo na mensagem, e também rejeitar textos que não convenham à mensagem. O fato é que o trecho escolhido e inserido no texto passa a ser inspirado porque “toda Escritura é inspirada por Deus”.
A Bíblia apresenta-nos centenas de exemplos de empréstimo literário. Habacuque copiou de Isaías (Hab. 2:14; Isa. 11:9). Habacuque 3:19 é cópia de II Samuel 22:34, que por sua vez é cópia de Isaías 52:7. Miquéias copiou de Joel, de Jeremias e de Zacarias. Há cópias nos Evangelhos, um do outro. Judas extraiu de “O Livro de Enoque” e “Ascensão de Moisés”, livros apócrifos. Quem pesquisa ficará surpreso de ver tanto “plágio”. E o Espírito de Profecia?
A Sra. White valeu-se de trechos de outros autores. Fez empréstimos literários, e confessou tê-los feito porque havia coincidência de idéias e para aprimorar seu estilo. (Ler a Introdução de O Grande Conflito). Não o fez para enganar nem lucrar. Deus a guiou também na escolha desses trechos. Num livro dela, Sketches from the Life of Paul, ela copiou muitos pensamentos de Conybeare and Howson, do livro Life of St. Paul; antes disso ela recomendou insistentemente aos obreiros e membros da igreja que lessem o livro de Conybeare, de que fez empréstimos literários.
Aí está a boa fé.
Deus não inspira as palavras dos Seus profetas, mas os pensamentos. Não lhes dá, pois, inspiração verbal, palavra por palavra. Se assim fosse, o mensageiro seria mero robô, um autômato, com sua personalidade anulada. A inspiração não está na originalidade, mas na necessidade e oportunidade da mensagem que Deus confia a Suas instrumentalidades humanas.
A Sra. White, apesar de sua carência cultural e pouca escolaridade, foi, sem dúvida, chamada por Deus para ser “a mensageira” da igreja remanescente. Escrevia o que lhe era mostrado em visão, com suas próprias palavras e, ao revisá-las, às vezes introduzia palavras e formas de outros escritores mais aprimorados literária e estilisticamente, de vez que ela tinha limitações. E foi inspirada na seleção dos trechos que copiou. As secretárias ajudavam na correção. E o que interessa é a mensagem final, concluída, definitiva e publicada. Graças à serva do Senhor, a Igreja Adventista do Sétimo Dia cresceu, venceu crises, prosperou e hoje mantém, no mundo, uma gigantesca rede hospitalar, uma expressiva obra assistencial e uma invejável cadeia de educandários de todos os graus.