O entrevistado desta edição é o pastor Elbio Pereyra, diretor do patrimônio Literário de Ellen White. Embora tenha vindo à América do Sul em gozo de férias, o Pastor Elbio aproveitou a oportunidade para proferir uma série de palestras, no IAE, nos dias 9 a 11 de março de 1982, procurando esclarecer uma série de questões relativas ao Espírito de Profecia, especialmente ao uso que Ellen White fez de outras fontes, além de suas visões.
RA – Pastor, há muito material da autoria de Ellen White que ainda não foi publicado?
Pastor Elbio – Ouvi dizer, mas não tenho certeza, que 70% do que ela escreveu já está publicado, ou pelos menos liberado. Temos atualmente umas 100 mil páginas escritas em uns 60 mil documentos, cartas e manuscritos. Mas a maior parte do que a igreja necessita já está em mãos da igreja.
RA – O livro O Grande Conflito, em espanhol, tem um capítulo que não foi escrito por Ellen White. Por que isso?
Pastor Elbio – A versão castelhana contém, de fato, um capítulo adicional à obra original em inglês. Trata-se do capítulo 13, intitulado: “O Despertar da Espanha”, que foi escrito pelos Pastores C. C. Crisler e H. R. Hall. Eles escreveram esse material com sentimento de Ellen White. Os irmãos tinham interesse na inclusão de um capítulo sobre a reforma na Espanha a fim de trabalharem pelos espanhóis e outros povos de origem hispânica. Este material existe apenas na edição em espanhol.
RA – Tudo o que Ellen White escreveu foi inspirado?
Pastor Elbio – Certas cartas escritas por ela iniciam dando algumas informações, e depois ela passa a dar uma mensagem. Entendemos que a parte que contém a mensagem, às vezes específica para uma pessoa, e dizendo que é uma mensagem de Deus, é inspirada. Mas temos também cartas dirigidas a amigos e familiares, e nem todas elas são necessariamente inspiradas.
RA – O que dizer, por exemplo das Meditações Matinais constituídas de cartas por ela escritas. Podemos considerar inspirado esse material?
Pastor Elbio – Nesse material há muita correspondência dirigida a indivíduos, e a natureza do material é o que geralmente determina se é inspirado ou não. Muita coisa foi tirada do diário de Ellen White. Ela autorizou isso, e disse que o diário poderia ser utilizado para o preparo de livros, pois existe material inspirado, embora grande parte não o seja. Muitos fatos não são inspirados, mas são, não obstante, verdadeiros; são simplesmente relatos diários do que acontecia com ela, ou informações a respeito da obra. Ela conta, por exemplo, como se iniciou a obra em Loma Linda, e como surgiram diversas instituições. Esse material não é necessariamente inspirado. Mas às vezes ela dá conselhos sobre a obra de Loma Linda, e isso é inspirado.
RA – Como explicar as citações que Ellen White faz de autores não inspirados, às vezes citando a fonte, de outras não?
Pastor Elbio – O Grande Conflito contém quase 400 citações de autores diferentes, o que equivale a 12% do livro. Na introdução desse livro Ellen White é muito clara sobre esse particular, dizendo: “em alguns casos em que algum historiador agrupou os fatos de tal modo a proporcionar, em breve, uma visão compreensiva do assunto, ou resumiu compreensivamente o assunto, ou resumiu convenientemente os pormenores, suas palavras foram citadas textualmente; nalguns outros casos, porém, não se nomeou o autor, visto como as transcrições não são feitas com o propósito de citar aquele escritor como autoridade, mas porque sua declaração provê uma apresentação do assunto, pronta e positiva”. Na visão do grande conflito, Ellen White recebeu cenas panorâmicas, e usou esse material apenas para completar as formas panorâmicas, e usou esse material apenas para completar as formas esqueléticas recebidas do Senhor, precisando, para isso, valer-se dos fatos conhecidos da História. Esses fatos não constituem, pois, uma revelação, visto que figuram nos textos de História. Deus não revela o que está ao alcance do conhecimento do homem.
RA – A inspiração divina, nesse caso, está em indicar ao mensageiro as fontes corretas nas quais ele pode se basear?
Pastor Elbio – Na introdução do O Grande Conflito Ellen White diz que no fenômeno da inspiração Deus dirige o homem para a seleção do material. Isto é um fato que ocorre também com os autores bíblicos: há autores bíblicos que citam outros autores da Bíblia, citam autores apócrifos, etc. Paulo, por exemplo, faz três citações de autores que não eram religiosos nem cristãos; eram pagãos. Essas citações aparecem na Bíblia, e nós as consideramos hoje inspiradas, não por que seus autores tivessem sido inspirados, mas porque Paulo cita as palavras daqueles homens. Assim, o que eles disseram passou a ser inspirado porque está registrado na Bíblia, e a Bíblia diz que toda a Escritura é inspirada.
RA – Poderia citar alguns desses textos?
Pastor Elbio – Sim. Temos um exemplo em Atos 17:28: “Pois nEle vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito”. Paulo cita aqui as palavras do poeta Arato, do século III A. C. Em I Cor. 15:33 temos uma declaração do poeta e filósofo Epimênides, também descrito como profeta por outros escritores antigos.
RA – A Inspiração de Ellen White é igual à dos profetas bíblicos?
Pastor Elbio – Ellen White diz que algumas pessoas em Battle Creek estavam classificando a inspiração em dois graus: um inferior e outro superior. Então ela escreveu dizendo que não existe tal coisa. A igreja Católica, a partir do Concílio de Tentro, passou a admitir um grau inferior de inspiração nos livros apócrifos. Mas a Igreja Adventista não admite graus de inspiração. O assunto é inspirado ou não.
RA – Se a inspiração de Ellen White é igual à dos profetas bíblicos, por que dizermos que a Bíblia é nossa única regra de fé? Não deveríamos considerar também o Espírito de Profecia como regra de fé?
Pastor Elbio – A posição da Igreja Adventista sempre tem sido a mesma. Os pioneiros afirmaram que a nossa posição é a mesma do protestantismo: a Bíblia e a Bíblia somente. Ellen White também declara isto. O Pastor Smith escreveu alguns artigos muito interessantes a esse respeito, e diz que a Bíblia apresenta os dons espirituais. Quem aceita a Bíblia e a Bíblia só, aceita uma doutrina que inclui os dons espirituais. O Espírito de Profecia manifestado em Ellen White é uma manifestação desse Dom. Portanto, os pioneiros, ao crerem na Bíblia como única regra de fé, não excluíam os Testemunhos. Além disso, é preciso levar em conta o contexto em que essa declaração foi feita. Esse contexto era: “A Igreja Católica com a tradição e magistério da Igreja”. A igreja Católica aceita em primeiro lugar a tradição, em segundo a Bíblia Sagrada, e em terceiro o magistério da Igreja. A reação particular dos protestantes foi que ao aceitarem “a Bíblia e a Bíblia somente”, eles excluíam dessa declaração o magistério da Igreja e também a tradição, que a Igreja considera como material revelado.
RA – Considerando que os profetas são seres humanos sujeitos às mesmas fraquezas que nós, não poderia dar-se o caso de o profeta escrever algo de sim mesmo, e por vaidade transmitir isso à posteridade como se fosse material inspirado?
Pastor Elbio – Sabemos positivamente que o apóstolo Paulo, em I Cor. 7:10-12, declara que alguns conselhos são se Deus e outros “digo eu, não o Senhor”. Mas no final do capítulo (verso 40), ele diz: “E penso que também eu tenho o Espírito de Deus”. É uma das únicas referências que me ocorrem no momento. Quanto à última parte da pergunta, isto é, a possibilidade de eles por vaidade transmitirem material não inspirados como se o fosse, isto não cabe na inspiração bíblica porque o controle do Espírito Santo na inspiração não permitiria que isso acontecesse.
RA – Explique a participação de Marian Davis nos escritos de Ellen White.
Pastor Elbio – Ellen White teve aproximadamente umas vinte secretárias durante o seu ministério de quase 70 anos. Mas a que mais atuou como secretária foi Marian, que permaneceu nesse trabalho por 26 anos. Marian Davis foi uma mulher extraordinária, de uma memória prodigiosa, grande sensibilidade e dedicada. Ellen White dizia que Marian “é quem faz os meus livros”, pois ela tinha uma capacidade impressionante, e como conhecia muito o material, selecionava-o e colocava-o em ordem, em livros com folhas sem uso. É nesse sentido que ela fazia os livros de Ellen White. Além disso, ela corrigia o texto e fazia transposições, isto é, muitas vezes, após Ellen White escrever algo, Marian dizia: “Este pensamento fica melhor aqui embaixo”. Assim Mariam fazia esses ajustes, todos com autorização de Ellen White.
RA – Então não existe nos livros de Ellen White redação de Marian Davis?
Pastor Elbio – Temos uma declaração muito definida neste sentido. A própria Marian Davis declara que se há uma coisa que ela não faz, é preparar um manuscrito. Ellen White não aceitava inserções de idéias alheias. E as correções eram sempre examinadas pela Sra. White. No caso de cartas, Ellen White redigia a carta, a secretária corrigia e então Ellen White relia a carta, e às vezes novas correções eram feitas. A partir de 1883 o material passou a ser datilografado. Antes que seus artigos fossem enviados à Casa Publicadora, Ellen White sempre dava um olhada final. Assim, de acordo com os documentos que temos no White Estate, e segundo informações das próprias secretárias, não existe material algum redigido pelas secretárias.
RA – Há diferença entre inspiração e revelação?
Pastor Elbio – Os temos não são fáceis de definir com exatidão. O que temos são definições convencionais. Basicamente, revelação tem a ver com o desconhecido. Aquele que o homem não conhece e não pode conhecer por si próprio, e Deus lhe quer revelar, é a parte da revelação. A inspiração tem a ver principalmente com a transmissão e redação da mensagem recebida através de revelação, e também os fatos históricos que Deus deseja sejam registrados. Temos muita coisa na Bíblia que não é revelação direta, é material histórico. Moisés recebeu revelações diretas de Deus, mas, além disto, ele registrou também em seus livros muitos fatos históricos dos quais ele participou. E Paulo diz em Rom. 15:4 que “tudo quanto outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito”, e parte desse material é histórico. Os livros de Lucas e Atos dos Apóstolos, por exemplo, são históricos. Não se constituem uma revelação pura, mas todo o material é inspirado.
RA – Já que a inspiração de Ellen White era igual à dos profetas bíblicos, podemos entender que ela não recebeu inspiração verbal, mas via as cenas e tinha de transmiti-las com suas próprias palavras?
Pastor Elbio – Certo. A Igreja Adventista nunca admitiu a inspiração verbal. Alguns de nosso pioneiros, durante algum tempo acreditavam na inspiração verbal, mas a igreja desde cedo estabeleceu que a inspiração verbal, mas a Igreja desde cedo estabeleceu que a inspiração não era verbal. Além disso, a própria Ellen White declara especificamente na introdução de O Grande Conflito, e também na primeira parte do primeiro volume de Mensagens Escolhidas, que Deus “deu sonhos e visões, símbolos e figuras; e aqueles a quem a verdade foi assim revelada, concretizaram os pensamentos em linguagem humana”.
RA – Que tipo de cena poderia se visualizada quando os pensamentos e conceitos são abstratos? Quando o profeta recebe instrução sobre princípios, por exemplo?
Pastor Elbio – Ellen White diz que o profeta é imbuído de ideias, e ele então descreve essas ideias com suas palavras. Assim sendo, não é preciso que o assunto seja sempre visualizado, numa cena, pois o Espírito pode trabalhar através de impressões.
RA – A Bíblia revela as fraquezas de seus heróis – os erros de Abraão, Jacó, Moisés, Davi, Salomão, Jonas, etc. – Por que não fazemos o mesmo com Ellen White? Era ela uma santa?
Pastor Elbio – Ellen White também cometia erros. Certa ocasião ela falou com o esposo, e este lhe disse que ela era um pouco independente. Ela, porém, defendeu-se desta declaração dizendo-lhe algumas coisas. Depois de alguns dias ela escreveu uma carta ao esposo dizendo que se ela houvesse seguido mais de perto a Jesus, não teria tais traços caráter. E ela continua dizendo que aprecia estar perto de Jesus, e então pede que o esposo lhe desculpe por ter dito algumas coisas que não devia. Ela, portanto, reconhece que é um ser humano.
RA – Além de suas falhas no relacionamento com o esposo, Ellen White também errou no relacionamento com outros?
Pastor Elbio – É possível que tivesse ocorrido algo assim em seu trato com obreiros, não sei. Nunca estudei casos assim. Sei de uma declaração que ela faz nos Testemunhos, em inglês, onde ela diz: “nisso cometi um erro”. A afirmação tinha a ver com o sanatório de Battle Creek. Os irmãos a haviam pressionado a escrever algo, pois queriam iniciar a campanha logo. Ela escreveu, e emitiu o seu juízo pessoal, sem dar a mensagem completa como deveria.
RA – Quanto ao vestuário, há no Brasil muita polêmica com respeito ao uso de calças compridas por parte das mulheres. Ellen White recomenda o uso de calças compridas para a proteção no frio, ou em alguma outra circunstância? Qual o exemplo que ela nos deixou nesse sentido?
Pastor Elbio – Ellen White diz que as mulheres devem agasalhar as extremidades da mesma maneira como os homens, e isto se consegue com o uso de calças compridas. Ele descreve o tipo de calças compridas, em Mensagens Escolhidas, vol. 2, págs. 471 e 479. Naturalmente, ela está falando de uma situação específica. Na região da Nova Inglaterra faz muito frio. Obviamente, entendemos que não haveria razão para agasalhar os membros dessa maneira se não fosse por causa do frio. Além disso, Ellen White sugeriu certa vez um modelo de roupa para senhoras, e temos inclusive algumas fotografias de pessoas que usaram calça comprida. Numa dessas fotos está o Pastor Tiago White ao lado de Ellen White, e ela está de calças compridas. A referência que temos é que ela usou essa calças compridas durante um período de aproximadamente 10 anos. Naturalmente, é preciso ter critério suficiente para saber como, quando e onde usar calças compridas. Obviamente, se dizemos que a Ellen White as usava, é provável que alguém queira aparecer na igreja de calças compridas, quando não é esse o caso. Ellen White tinha um princípio para todas as coisas: tempo, lugar e circunstâncias. E o uso de calças compridas por parte dela, tem a ver com a saúde, e não com a moda.
RA – Nos livros Ciência do Bom Viver e Conselhos Sobre o Regime Alimentar, a Ellen White condena o uso de queijo. O s compiladores fizeram uma nota de rodapé dizendo que ela se referia somente ao queijo forte, picante. Alguns discordam, dizendo que ela condenava todo e qualquer tipo de queijo. O que o senhor diz?
Pastor Elbio – Não é fácil a pergunta, pois temos hoje, nos Estados Unidos mais de 160 tipos diferentes de queijo. Em outros lugares do mundo existem ainda outros tipos de queijo. Os queijos do tempo de Ellen White também eram diferentes dos de hoje, pois naquele tempo não existia a pasteurização da maneira como temos hoje. É provável, portanto, que haja diferença entre queijo e queijo. Entendo que os queijos de longa duração são os menos sadios. Está provado que o requeijão, que é um tipo de queijo fresco, é o melhor que há. Não temos uma referência definida quanto ao tipo de queijo a que Ellen White se referia. Quando os irmãos na Alemanha estavam traduzindo o que Ellen White havia escrito sobre o queijo, escreveram para o Pastor Guilherme White (filho de Ellen White), e o Pastor Guilherme autorizou-os acrescentar que se tratava de queijos fortes, porque esse era o sentido que Ellen White dava ao assunto do queijo.
RA – Ellen White escreveu extensamente sobre educação dos filhos, insistindo na necessidade da presença física da mãe junto aos filhos. Como conciliar essas recomendações com o fato de que ela viajava constantemente, e deixava muitas vezes os filhos durante semanas e meses aos cuidados de terceiros?
Pastor Elbio – Temos declarações bem definidas de Ellen White, nas quais ela lamenta muito a separação dos filhos. Ela sofria muito com isso, mas o fazia em virtude de seu sentido de missão, de sua responsabilidade pela pregação do evangelho.
RA – Como o senhor avalia a experiência de se destacar um livro do Espírito de Profecia para leitura e estudo em conjunto nos cultos de Quarta-feira como tem sido feito nos últimos dez anos, na Divisão Sul-Americana?
Pastor Elbio – Tanto quanto eu saiba, foram muitos bons esses estudos. A razão disso era que queríamos levar avante não apenas o evangelhismo, mas também o fortalecimento da igreja com os conselhos do Espírito de Profecia. Achávamos que uma igreja forte nos conselhos de Deus é uma igreja que levará avante a obra missionária de modo mais eficaz. Chegamos de modo mais eficaz. Chegamos a distribuir num ano, entre as duas casas publicadoras da América do Sul, 55 mil livros. Também foi muito positivo o estudo sistemático, com manual de instruções, com sermão especial, e com os certificados que foram entregues na maioria das igrejas. O estudo era feito sob a direção do pastor ou comissão local, e com a orientação enviada para os Campos, e que consistia de um guia de estudo, um manual de instruções para pastores e anciãos, e o livro de estudo.
RA – Que conselho o senhor daria para motivar o povo adventista a estudar mais o Espírito de Profecia?
Pastor Elbio – Insisto em três ideias: devemos possuir os livros, devemos ler os livros, e devemos praticar o que está nos livros. O problema não é apenas com os livros de Ellen White. É com a Bíblia também. O nosso povo não está lendo a Bíblia como deveria. O plano do Livro do Ano é precisamente para sistematizar o estudo, e em certo sentido levar a igreja a estudar. O pessoal compra um livro, leva para casa, não lê. Com esse plano, estamos quase obrigando-os a ler os livros. Acho que devemos incentivar o povo à leitura, tanto da Bíblia como do Espírito de Profecia. Compete aos pastores locais incentivar esse estudo em nível de igreja. Nos Campos onde o pastor tem essa preocupação, e prepara uma programação adequada, os irmãos estão lendo, e através da leitura estão sendo beneficiados.
Fonte: Publicado na Revista Adventista em Junho de 1982, p. 11