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\u00a0 Trindade: um dogma de Constantino?<\/h1>\n

\u00a0Rodrigo P. Silva, doutor em Teologia<\/em><\/p>\n

\u00a0Resumo: <\/b>Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo t\u00eam alegado que a doutrina da Trindade foi formulada no Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia (325 d.C.), sob a influ\u00eancia do imperador romano Constantino. O presente artigo demonstra a exist\u00eancia de v\u00e1rias alus\u00f5es \u00e0 Trindade j\u00e1 nos escritos dos Pais da Igreja pr\u00e9-nicenos. O autor analisa o significado hist\u00f3rico daquele evento e seus antecedentes teol\u00f3gicos, bem como o real papel de Constantino no processo.\u00a0<\/b><\/p>\n

Introdu\u00e7\u00e3o<\/h2>\n

Entre os v\u00e1rios ataques produzidos por movimentos antitrinitarianos est\u00e1 o argumento hist\u00f3rico de que a Trindade \u00e9 fruto do Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia e constitui, portanto, um dogma de Constantino. Tal alega\u00e7\u00e3o pode ser encontrada tanto em sites da Internet quanto nos materiais publicados por grupos dissidentes do adventismo.<\/p>\n

Em mat\u00e9ria veiculada pelo site www.adventistas.com, Ennis Meier declarou que \u201co Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia deu origem \u00e0 cren\u00e7a em tr\u00eas deuses. A cren\u00e7a na trindade de pessoas Divinas n\u00e3o teve origem na B\u00edblia, mas no Conc\u00edlio ou S\u00ednodo de Nic\u00e9ia, o primeiro conc\u00edlio ecum\u00eanico da hist\u00f3ria, no qual participaram 318 bispos, no ano 325 da era crist\u00e3\u201d.1<\/sup><\/p>\n

Suas considera\u00e7\u00f5es acerca do encontro chegam ao ponto de sustentar que \u201ca formula\u00e7\u00e3o do dogma contra \u00c1rio marcou oficialmente o surgimento da Besta do Apocalipse\u201d.2 <\/sup>Tal afirma\u00e7\u00e3o destoa fortemente de todas as interpreta\u00e7\u00f5es do adventismo hist\u00f3rico,3 <\/sup>inclusive de Ellen White,4 <\/sup>que viam nesta besta uma alus\u00e3o n\u00e3o a Constantino, mas ao papado, especialmente a partir do quarto s\u00e9culo.<\/p>\n

Embora com Constantino a Igreja enfrente um profundo processo de apostasia, \u00e9 importante lembrar que as nuances prof\u00e9ticas de Apocalipse 13 aludem a um per\u00edodo posterior que se inicia com a supremacia papal e o in\u00edcio dos 1.260 anos em 538 d.C. Constantino n\u00e3o foi um papa. Mesmo que tenha agido como l\u00edder da Igreja nalgum momento, nunca arvorou para si o t\u00edtulo de Pontifex Maximus do cristianismo. Ademais, o bispo de Roma n\u00e3o possu\u00eda no quarto s\u00e9culo o poder pol\u00edtico-absolutista que faria do papado a maior autoridade no mundo ocidental. Logo, seria estranho vincular Constantino \u00e0 imagem da Besta de Apocalipse 13.5 <\/sup>Munido da refer\u00eancia a um site que promove o ate\u00edsmo, outro escritor que se denomina \u201cirm\u00e3o X\u201d tamb\u00e9m se valeu da contundente afirma\u00e7\u00e3o de que \u201ccom Constantino come\u00e7a a cria\u00e7\u00e3o da Trindade\u201d.6 <\/sup>Ele ainda acrescenta que o voto dos bispos a favor da posi\u00e7\u00e3o trinitariana se deu por press\u00e3o do imperador, que precisava do respaldo conciliar. Ora, o estranho \u00e9 que Constantino n\u00e3o se valia de \u201cvotos\u201d para fazer cumprir seus des\u00edgnios. Apenas expedia um decreto (como o fez no edito de Mil\u00e3o e no decreto dominical) e todos se sujeitavam. Por que, ent\u00e3o, no caso da Trindade, dependeria do apoio episcopal da Igreja? Bastava-lhe um an\u00fancio imperial e o dogma estaria oficializado. Esta quest\u00e3o n\u00e3o parece ter sido avaliada por nenhum dos artigos at\u00e9 agora apresentados.<\/p>\n

Seguindo no mesmo vi\u00e9s de Meier e do \u201cirm\u00e3o X\u201d, Ricardo Nicotra tamb\u00e9m advoga que este per\u00edodo de \u201cpaganiza\u00e7\u00e3o\u201d [sic] do cristianismo foi o ber\u00e7o da trindade, e ainda acentua que \u00e9 \u201cimportante lembrar que o Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia n\u00e3o estabeleceu apenas os fundamentos para a doutrina da Trindade. Outras decis\u00f5es foram tomadas pelos bispos da igreja cat\u00f3lica em 325.\u201d7 <\/sup>Estas decis\u00f5es, conforme exemplifica o autor, envolviam a transfer\u00eancia do dia de descanso semanal do s\u00e1bado para o domingo.<\/p>\n

Embora este \u00faltimo autor, citando uma fonte da Internet (Wikipedia), cometa um erro de natureza hist\u00f3rica ao vincular o domingo a Nic\u00e9ia \u2013 pois \u00e9 sabido que o decreto dominical de Constantino data de quatro anos antes do Conc\u00edlio (321 d.C.)8 <\/sup>\u2013 sua conclus\u00e3o deve ser analisada para ser bem compreendida. Para ele, uma vez que Constantino convocou a reuni\u00e3o, conclui-se que o mesmo homem que promulgou a primeira lei dominical foi o \u201cpai do dogma da Trindade\u201d. Isto, \u00e9 claro, deduzindo como certa a id\u00e9ia de que tal doutrina teria seu in\u00edcio em Nic\u00e9ia. Se for assim, a cren\u00e7a em um Deus Tri\u00fano seria t\u00e3o her\u00e9tica quanto a guarda do domingo, pois viriam da mesma fonte ap\u00f3stata.<\/p>\n

O objetivo, portanto, deste artigo \u00e9 avaliar a proced\u00eancia hist\u00f3rica de tal afirma\u00e7\u00e3o. Ou seja, seria a Trindade um dogma de Constantino? Suas origens se devem ao Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia?<\/p>\n

Para responder a estas perguntas, \u00e9 necess\u00e1rio que recorramos aos escritos dos primeiros pensadores crist\u00e3os que viveram entre o segundo e o terceiro s\u00e9culo, isto \u00e9, imediatamente depois do per\u00edodo apost\u00f3lico e antes do Conc\u00edlio. A l\u00f3gica \u00e9 simples: se o argumento antitrinitariano estiver certo, ou seja, se a Trindade \u00e9 mesmo uma doutrina constantiniana, n\u00e3o devemos encontrar neste per\u00edodo inicial nenhuma defesa \u00e0 id\u00e9ia de um Deus Tri\u00fano. Pelo contr\u00e1rio, o ensinamento da \u00e9poca dever\u00e1 ser bem diferente, afirmando que Cristo \u00e9 apenas um segundo ser existente depois do Pai, e o Esp\u00edrito Santo uma emana\u00e7\u00e3o impessoal de ambos.<\/p>\n

Em seguida a este excurso pelos Pais da Igreja, apresentaremos brevemente uma an\u00e1lise dos elementos que motivaram o S\u00ednodo Niceno. \u00c9 importante verificar qual a real atua\u00e7\u00e3o de Constantino em todo o processo. Ademais, um balan\u00e7o desapaixonado do evento revelar\u00e1 que conseq\u00fc\u00eancias, de fato, Nic\u00e9ia trouxe para a Igreja, pois, pelo que se percebe nalguns autores, h\u00e1 a tend\u00eancia de se atribuir ao encontro elementos de apostasia que n\u00e3o fizeram parte de sua pauta.9<\/sup><\/p>\n

N\u00e3o se trata, portanto, de um artigo b\u00edblico-exeg\u00e9tico, mas de uma pesquisa de cunho hist\u00f3rico. Logo, n\u00e3o se deve estranhar a aus\u00eancia de textos b\u00edblicos neste estudo. As bases b\u00edblicas da Trindade s\u00e3o apresentadas noutros artigos e se mostram excelentes. A discord\u00e2ncia de alguns n\u00e3o autoriza concluir que tais bases n\u00e3o existam. Afinal, muitos tamb\u00e9m negam a validade do s\u00e1bado no Novo Testamento, embora os adventistas h\u00e1 mais de um s\u00e9culo venham evidenciando a solidez b\u00edblica deste ensinamento.<\/p>\n

Pais da Igreja<\/h2>\n

Em rela\u00e7\u00e3o ao recurso que se faz aos Pais da Igreja que viveram antes de Nic\u00e9ia,10 <\/sup>percebe-se que existe uma aproxima\u00e7\u00e3o por demais piedosa por parte de autores cat\u00f3licos e outra mais cautelosa por parte de autores protestantes. \u00c9 que o catolicismo sempre aceitou a tradi\u00e7\u00e3o p\u00f3s-b\u00edblica como leg\u00edtima fonte de doutrinas,11 <\/sup>o que eleva os Pais da Igreja \u00e0 categoria de \u201c autores inspirados\u201d, cuja fun\u00e7\u00e3o norte-adora era a mesma atribu\u00edda aos escritores b\u00edblicos.12 <\/sup>J\u00e1 o protestantismo com seu ideal de sola scriptura <\/i>preferiu ver nos escritos dos Pais apenas uma loca probantia <\/i>da teologia sistem\u00e1tica, ou seja, estud\u00e1-los como testemunhas hist\u00f3ricas do comportamento progressivo de uma doutrina atrav\u00e9s dos tempos e n\u00e3o como fonte autoritativa de uma cren\u00e7a.13<\/sup><\/p>\n

Com estes elementos em mente, \u00e9 importante desdobrar alguns esclarecimentos em rela\u00e7\u00e3o \u00e0s cita\u00e7\u00f5es patr\u00edsticas que, a seguir, ser\u00e3o feitas. Uma abordagem adventista destes escritores compreender\u00e1 que:<\/p>\n

1) Os Pais da Igreja testemunham o modo como o cristianismo primitivo, antes de sofrer qualquer influ\u00eancia do catolicismo medieval, entendia certas passagens das Escrituras. Assim, podem oferecer uma vis\u00e3o mais desanuviada das doutrinas apost\u00f3licas, pois alguns deles, como Clemente de Roma e Policarpo, conheceram pessoalmente os ap\u00f3stolos e receberam aprova\u00e7\u00e3o destes como l\u00edderes da Igreja.<\/p>\n

2) Embora n\u00e3o se possa dizer que houvesse uma perfeita \u201cunanimidade de pensamento\u201d neste per\u00edodo, \u00e9 poss\u00edvel afirmar que eles j\u00e1 tinham bem n\u00edtida a diferen\u00e7a entre ensino apost\u00f3lico (ortodoxia)14 <\/sup>e os movimentos her\u00e9ticos, especialmente aqueles oriundos de Marcion e do gnosticismo.15 <\/sup>Elementos b\u00e1sicos da f\u00e9 como a filia\u00e7\u00e3o divina de Cristo, sua encarna\u00e7\u00e3o, o ju\u00edzo final e outros j\u00e1 estavam firmemente estabelecidos desde os tempos antigos.<\/p>\n

3) Devido ao car\u00e1ter historicamente inicial de seus tratados, \u00e9 importante que o leitor n\u00e3o busque em seus argumentos a nomenclatura teol\u00f3gica pr\u00f3pria dos tempos p\u00f3s-nicenos. Termos que mais tarde passaram a ser t\u00e9cnicos na teologia n\u00e3o possu\u00edam ainda aquele tratamento un\u00e2nime e cuidadoso que se exigir\u00e1 de um tratado teol\u00f3gico contempor\u00e2neo. Hypostasis<\/i>, por exemplo, era um termo usado por alguns escritores para referir-se \u00e0 pessoa, enquanto outros o empregavam como sin\u00f4nimo de subst\u00e2ncia.16 <\/sup>O mesmo se d\u00e1 com seus conceitos que por estarem numa sistematiza\u00e7\u00e3o inicial n\u00e3o abarcar\u00e3o todos os detalhes de uma discuss\u00e3o que lhes \u00e9 posterior.<\/p>\n

4) A despeito de seu grande valor testemunhal, os Pais da Igreja n\u00e3o devem ser usados como fonte de doutrina. Na verdade nenhum deles reclamou para si inspira\u00e7\u00e3o divina ou se declarou profeta. A fonte b\u00e1sica e \u00fanica da f\u00e9 crist\u00e3 era e continua sendo a B\u00edblia. Quaisquer escritos posteriores servir\u00e3o apenas para facilitar a compreens\u00e3o do que est\u00e1 no Santo Livro e n\u00e3o para produzir novas cren\u00e7as.<\/p>\n

5) O valor testemunhal destes escritores est\u00e1 representado profeticamente na carta apocal\u00edptica \u00e0 Igreja de Esmirna (Ap 2:8-11), pois foi neste per\u00edodo que eles viveram. Note que nenhuma repreens\u00e3o \u00e9 apresentada em rela\u00e7\u00e3o aos crist\u00e3os daquele tempo. Pelo contr\u00e1rio, sua f\u00e9 \u00e9 elogiada com muito vigor, pois muitos deles tiveram que assinar seu testemunho com o pr\u00f3prio sangue de seu mart\u00edrio.<\/p>\n

6) \u00c9 importante repetir que o proposto neste artigo n\u00e3o \u00e9 endossar indiscrimi-nadamente toda doutrina dos Pais da Igreja, mas verificar, pelo seu testemunho, se a Trindade era crida na Igreja pr\u00e9-nicena ou se, como dizem alguns, seria fruto apenas do Conc\u00edlio ocorrido no quarto s\u00e9culo.<\/p>\n

Trindade antes de Nic\u00e9ia<\/h2>\n

USO DO TERMO \u201cTRINDADE\u201d<\/h3>\n

Uma verifica\u00e7\u00e3o no index geral da Ante-Nicene Fathers <\/i>e da Sources Chr\u00e9tiennes<\/i>17 <\/sup>que formam a cole\u00e7\u00e3o de todos os escritores crist\u00e3os mais antigos (inclusive os anteriores a Nic\u00e9ia) nos mostra que muito antes do Conc\u00edlio, a cren\u00e7a na Trindade j\u00e1 havia sido sistematizada entre os crist\u00e3os. Ali\u00e1s, o pr\u00f3prio termo latino \u201cTrindade\u201d foi usado em 212 d.C. por Tertuliano, 113 anos antes de Nic\u00e9ia! Falando da Igreja de Deus, ele menciona o Esp\u00edrito \u201cno qual est\u00e1 a Trindade de uma Divindade: Pai, Filho e Esp\u00edrito Santo\u201d (in quo est trinitas unius diuinitatis, Pater et Filius et Spiritus sanctus<\/i>)18<\/sup><\/p>\n

A tradu\u00e7\u00e3o latina da obra de Or\u00edgenes tamb\u00e9m menciona o termo ao considerar que \u201co batismo de salva\u00e7\u00e3o n\u00e3o est\u00e1 completo a n\u00e3o ser [que seja exercido] pela autoridade da excelent\u00edssima Trindade de todos eles, que \u00e9 constitu\u00edda do Pai, do Filho e do Esp\u00edrito Santo. Assim, temos ajuntado o nome do Esp\u00edrito Santo ao Deus eterno e ao seu \u00fanico Filho\u201d.19 <\/sup>Tal coment\u00e1rio torna-se relevante se entendermos que, talvez j\u00e1 nesse tempo, houvesse alguma controv\u00e9rsia quanto \u00e0 f\u00f3rmula batismal e a genuinidade de Mateus 28:19.<\/p>\n

Te\u00f3filo, escrevendo quase meio s\u00e9culo antes de Tertuliano e Or\u00edgenes, usa a express\u00e3o Triados<\/i>, que certamente seria uma equival\u00eancia sem\u00e2ntica de trinitas <\/i>ou seu original em grego. Note a compara\u00e7\u00e3o po\u00e9tica que ele usa ao relacionar a Trindade ao primeiro cap\u00edtulo de G\u00eanesis: \u201cos tr\u00eas dias que est\u00e3o antes dos tr\u00eas luminares [da Cria\u00e7\u00e3o] s\u00e3o tipos da Trindade (Triados<\/i>) de Deus\u201d.20<\/sup><\/p>\n

Levando-se em considera\u00e7\u00e3o que Te\u00f3filo fala de \u201ctipos da Trindade\u201d, \u00e9 razo\u00e1vel supor que ele n\u00e3o esteja falando de algo novo ou criando um neologismo. A express\u00e3o textual sup\u00f5e o uso de um termo j\u00e1 conhecido entre os leitores. Logo, n\u00e3o seria estranho imaginar que o mesmo voc\u00e1bulo aparecesse em outros escritos do mesmo per\u00edodo que se encontram perdidos em nossos dias.<\/p>\n

Assim, retrocede para cerca de um s\u00e9culo e meio antes de Nic\u00e9ia o uso t\u00e9cnico do termo Trindade, legitimamente reconhecido na literatura crist\u00e3. Mas talvez algu\u00e9m pergunte: por que este termo n\u00e3o aparece na B\u00edblia? Para responder a esta quest\u00e3o \u00e9 preciso compreender que, a partir do s\u00e9culo segundo, o centro missiol\u00f3gico da Igreja transferiu-se em definitivo do ambiente judeu-palestino para o mundo greco-romano. O trabalho iniciado por Paulo entre os gentios v\u00ea-se finalmente estabilizado no ambiente gent\u00edlico e come\u00e7a a gravitar em torno de quest\u00f5es que n\u00e3o haviam sido levantadas no ambiente judaico.<\/p>\n

A Igreja viu-se, ent\u00e3o, obrigada a expressar sua f\u00e9 de um modo compreens\u00edvel para aqueles que n\u00e3o vinham de uma cultura v\u00e9tero-testament\u00e1ria, mas tinham seu pensamento regido pelos conceitos da filosofia grega. Quest\u00f5es ontol\u00f3gicas antes n\u00e3o sistematizadas come\u00e7aram a invadir os c\u00edrculos crist\u00e3os e, deste modo, os escritores tiveram de cunhar termos helen\u00edsticos para tornar intelig\u00edvel a f\u00e9 do Novo Testamento. Contudo, tal exerc\u00edcio n\u00e3o significava de modo nenhum uma apostasia do ensino apost\u00f3lico. O pr\u00f3prio Jo\u00e3o usou o conceito filos\u00f3fico do logos <\/i>para expressar com continuidades e diferen\u00e7as a doutrina da encarna\u00e7\u00e3o numa linguagem compreens\u00edvel aos ef\u00e9sios influenciados pela doutrina de Her\u00e1clito.<\/p>\n

CONCEITOS PATR\u00cdSTICOS SOBRE A TRINDADE<\/h3>\n

Clemente de Roma, que viveu no fim do primeiro s\u00e9culo, escreveu por volta do ano 96 uma carta de conforto aos crist\u00e3os de Corinto, que estavam sendo perseguidos por Domiciano (o mesmo imperador que deportou Jo\u00e3o para a ilha de Patmos). Ao falar da uni\u00e3o da Igreja ele diz: \u201cN\u00e3o temos n\u00f3s [todos] um \u00fanico Deus e um \u00fanico Cristo? E n\u00e3o h\u00e1 um \u00fanico Esp\u00edrito da Gra\u00e7a derramado sobre n\u00f3s?\u201d21 <\/sup>Embora este n\u00e3o seja um texto de \u201cdefesa\u201d da Trindade, chama-nos a aten\u00e7\u00e3o sua \u201clinguagem trinitariana\u201d que subentende uma id\u00e9ia tri\u00fana de Deus. Outros autores s\u00e3o ainda mais claros em sua exposi\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

In\u00e1cio (\u2020 105 d.C.), que foi o segundo sucessor de Pedro como pastor em Antioquia,22 <\/sup>tamb\u00e9m ensinava a doutrina da Trindade. M\u00e1rtir durante o reinado de Trajano, ele escreveu uma ep\u00edstola aos crist\u00e3os da Tr\u00e1lia, dizendo-lhes que, a despeito do sofrimento, continuassem \u201cem \u00edntima uni\u00e3o com Jesus Cristo, o nosso Deus\u201d23 <\/sup>\u2013 o que acentua a ideia da divindade de Cristo. Num outro manuscrito, onde uma vers\u00e3o mais longa \u00e9 preservada, o mesmo autor adverte os irm\u00e3os contra aqueles que ensinavam doutrinas contr\u00e1rias \u00e0 f\u00e9 dos ap\u00f3stolos. Entre seus ensinos equivocados estaria a ideia de que \u201co Esp\u00edrito Santo n\u00e3o existe\u201d e que \u201co Pai, o Filho e o Esp\u00edrito Santo seriam a mesma pessoa\u201d.24<\/sup><\/p>\n

Justino, cognominado \u201co M\u00e1rtir\u201d, foi outro que escreveu v\u00e1rias apologias em favor do Cristianismo e contra a supremacia da filosofia grega. Num de seus textos, conclu\u00eddo por volta de 160 d.C., ele diz: \u201cJ\u00e1 que somos considerados ateus, n\u00f3s admitimos nosso ate\u00edsmo em rela\u00e7\u00e3o a estes [v\u00e1rios] tipos de deuses [do polite\u00edsmo]. Mas, no que diz respeito ao verdadeiro Deus, o Pai da justi\u00e7a e temperan\u00e7a …, ao Filho, … e ao Esp\u00edrito Prof\u00e9tico, [saibam que] n\u00f3s os adoramos e reverenciamos.\u201d25<\/sup><\/p>\n

Aten\u00e1goras, tamb\u00e9m respondendo \u00e0 acusa\u00e7\u00e3o de serem os crist\u00e3os chamados de ateus por n\u00e3o aceitarem o polite\u00edsmo pag\u00e3o, escreveu em 175 d.C.: \u201cOra, quem n\u00e3o ficaria perplexo em ouvir chamar de ateus pessoas que pregam de Deus o Pai, de Deus o Filho e do Esp\u00edrito Santo e que declaram serem um no poder, mas distintos na ordem?\u201d26 <\/sup>Noutra passagem ele ainda diz: \u201cOs crist\u00e3os reconhecem a Deus e a seu Logos. Eles tamb\u00e9m reconhecem o tipo de unicidade que o Filho tem com o Pai e que tipo de comunh\u00e3o o Pai tem com o Filho. Ademais, eles sabem o que \u00e9 o Esp\u00edrito e que a unidade \u00e9 [formada] destes tr\u00eas: O Esp\u00edrito, o Filho e o Pai\u201d.27 <\/sup>\u201cN\u00f3s reconhecemos um Deus, um Filho e um Esp\u00edrito Santo, os quais s\u00e3o unidos na ess\u00eancia.\u201d28<\/sup><\/p>\n

Ireneu de Lion \u00e9 outro importante autor deste per\u00edodo. Convertido na adolesc\u00eancia, ele foi disc\u00edpulo de Policarpo que, por sua vez, foi disc\u00edpulo do ap\u00f3stolo Jo\u00e3o. Sua principal obra, intitulada Contra heresias<\/i>, disp\u00f5e de cinco volumes e foi escrita por volta de 177 d.C. Respondendo \u00e0s id\u00e9ias gn\u00f3sticas de seu tempo, ele toma o cuidado de diferenciar, por exemplo, o \u201cf\u00f4lego [esp\u00edrito] de vida\u201d dados \u00e0s criaturas em geral, do \u201cEsp\u00edrito Santo\u201d, que \u00e9 Deus habitando com o crente.29<\/sup><\/p>\n

Explicando ainda que Deus \u00e9 diferente dos homens, Ireneu fala da Palavra e da Sabedoria do Criador como sendo duas pessoas divinas unidas a uma terceira (o Pai) numa \u00fanica divindade.30<\/sup><\/p>\n

Hip\u00f3lito (c. 205 d.C.), autor do mais antigo coment\u00e1rio de Daniel de que dispomos, disse que \u201ca Terra \u00e9 movida por estes tr\u00eas: o Pai, o Filho e o Esp\u00edrito Santo\u201d.31 <\/sup>Noutra passagem, ap\u00f3s citar a f\u00f3rmula batismal em nome do Pai, do Filho e do Esp\u00edrito, ele demonstra que j\u00e1 no seu tempo havia os que negavam esta doutrina, pois diz: \u201cqualquer um que omitir um destes tr\u00eas, falha em glorificar a Deus de um modo perfeito. Pois \u00e9 por meio desta Trindade (Triados<\/i>) que o Pai \u00e9 glorificado.\u201d32<\/sup><\/p>\n

Sendo o \u00faltimo te\u00f3logo de peso a escrever em grego e n\u00e3o em latim, Hip\u00f3lito merece um destaque por ter sido, nas palavras de W. Walker, \u201cum dos primeiros antipapas\u201d da hist\u00f3ria.33 <\/sup>Ele foi veemente em sua oposi\u00e7\u00e3o a Calixto, bispo de Roma, que j\u00e1 naqueles idos pretendia a centraliza\u00e7\u00e3o do poder. Calixto chegou a disciplinar Hip\u00f3lito por sua teologia acerca do Logos <\/i>divino, o que demonstra que seus conceitos trinitarianos provinham de sua consci\u00eancia, e n\u00e3o de uma imposi\u00e7\u00e3o arbitr\u00e1ria do bispo de Roma. Cripriano ( \u2020 250 d.C.), que tamb\u00e9m cita como v\u00e1lida a f\u00f3rmula batismal mateana,34 <\/sup>explicando que \u201cele [o evangelista] sugere aqui a Trindade, na qual as na\u00e7\u00f5es foram batizadas\u201d.35<\/sup><\/p>\n

Embora a cr\u00edtica textual coloque como esp\u00fario o texto de 1 Jo\u00e3o 5:7,36 <\/sup>\u00e9 digno de nota que Cipriano parece fazer refer\u00eancia a esta interpola\u00e7\u00e3o quando diz: \u201cO Senhor disse: \u2018Eu e o Pai somos um\u2019 e novamente est\u00e1 escrito acerca do pai do Filho e do Esp\u00edrito Santo: \u2018e estes tr\u00eas s\u00e3o um\u2019\u201d.37 <\/sup>\u00c9 claro que tal cita\u00e7\u00e3o, indireta, n\u00e3o \u00e9 suficiente para qualificar como digna a interpola\u00e7\u00e3o da comma joanina<\/i>. N\u00e3o obstante, \u00e9 poss\u00edvel assumir que esta interpola\u00e7\u00e3o ou parte dela j\u00e1 fosse conhecida pelos pais latinos bem antes de Nic\u00e9ia.<\/p>\n

O que aconteceu em Nic\u00e9ia?<\/h2>\n

ANTECEDENTES TEOL\u00d3GICOS<\/h3>\n

Por volta de 325 d.C. a igreja estava dividida por uma pol\u00eamica teol\u00f3gica iniciada no Egito. Um grupo liderado por \u00c1rio e Eus\u00e9bio de Nicom\u00e9dia, ensinava que Cristo era um semi-deus \u201csemelhante\u201d, por\u00e9m n\u00e3o totalmente igual, ao Pai. Outro, liderado por Alexandre, ex-bispo de \u00c1rio, e por Atan\u00e1sio, via nisto uma aproxima\u00e7\u00e3o muito perigosa com o gnosticismo divulgado no Egito. Eles lembravam que a confiss\u00e3o mais antiga dos crist\u00e3os dizia que Cristo est\u00e1 em p\u00e9 de igualdade com Pai. J\u00e1 um terceiro grupo liderado por Eus\u00e9bio de Cesar\u00e9ia (um adulador de Constantino, segundo Ellen White38<\/sup>), via com neutralidade a quest\u00e3o e preferia propor com urg\u00eancia uma declara\u00e7\u00e3o que abarcasse os dois lados.<\/p>\n

Para entender as bases do ensino ariano e da preocupa\u00e7\u00e3o de Atan\u00e1sio quanto a este tipo de abordagem, \u00e9 importante compreender a sedu\u00e7\u00e3o intelectual da filosofia grega sobre a teologia do quarto s\u00e9culo. Ellen White comenta de modo muito apropriado que \u201cmesmo antes do estabelecimento do papado, os ensinos filos\u00f3ficos pag\u00e3os haviam recebido aten\u00e7\u00e3o e exercido influ\u00eancia na igreja\u201d.39<\/sup><\/p>\n

O que era para ser apenas uma abordagem da f\u00e9 para o mundo greco-romano tornou-se uma sobreposi\u00e7\u00e3o do helenismo sobre a teologia crist\u00e3. Embevecidos pela cultura grega, \u00c1rio e seus disc\u00edpulos n\u00e3o conseguiram escapar \u00e0 sedu\u00e7\u00e3o da filosofia gn\u00f3stica t\u00e3o disseminada entre os alexandrinos. Para estes, o maior problema da exist\u00eancia humana estava no dualismo idealizado por Plat\u00e3o e aprofundado por correntes posteriores. Era um pressuposto inquestion\u00e1vel acreditar que o esp\u00edrito (naturalmente bom) e a mat\u00e9ria (naturalmente m\u00e1) jamais coexistiam em sintonia. Se assim o fosse, o primeiro seria contaminado pelo \u00faltimo.<\/p>\n

Portanto, o desafio agora era adequar doutrinas judaico-crist\u00e3s a este universo de id\u00e9ias que n\u00e3o admitia a mat\u00e9ria como cria\u00e7\u00e3o direta de um Deus-Esp\u00edrito, nem a encarna\u00e7\u00e3o como uma realidade tang\u00edvel. Se Deus houvesse criado o mundo ou se encarnado de verdade, sua divindade estaria seriamente comprometida \u2013 pensavam os gn\u00f3sticos.<\/p>\n

Assim, modelos alternativos foram criados para acomodar a doutrina crist\u00e3 a este padr\u00e3o filos\u00f3fico. Um destes pode ser visto nos manuscritos coptas (sahidico) encontrados por James Bruce, em 1769. Para resolver o problema da exist\u00eancia da mat\u00e9ria que n\u00e3o poderia ser atribu\u00edda a um Deus-Esp\u00edrito, eles diziam que o Alt\u00edssimo criou um deus menor que exerceu o papel de art\u00edfice (demiurgo) para a cria\u00e7\u00e3o do mundo. Assim, a mat\u00e9ria veio \u00e0 exist\u00eancia sem que Deus se contaminasse criando-a diretamente com as m\u00e3os. Cristo era este art\u00edfice que hoje se faz presente no mundo atrav\u00e9s do esp\u00edrito (pneuma) que \u00e9 sua energia impessoal. O conhecimento disto (gnosis<\/i>) \u00e9 o que salva a humanidade.<\/p>\n

CONVOCA\u00c7\u00c3O CONCILIAR<\/h3>\n

Enquanto o cristianismo apost\u00f3lico era a democratiza\u00e7\u00e3o do mist\u00e9rio de Deus \u2013 conceito herdado do juda\u00edsmo \u2013 o gnosticismo era a sofistica\u00e7\u00e3o do mist\u00e9rio, pois o seu entendimento n\u00e3o advinha de uma revela\u00e7\u00e3o mas da compreens\u00e3o racional dos iniciados que n\u00e3o tinham dificuldades intelectuais para explic\u00e1-lo. Para eles, o que fugia \u00e0 compreens\u00e3o racional n\u00e3o era doutrina de Deus e isso estava causando uma preocupante divis\u00e3o no cristianismo do Egito e de Antioquia (cidade natal de \u00c1rio). Por isso, Alexandre e Atan\u00e1sio escreveram cartas a Roma pedindo um encontro que pusesse termo \u00e0 quest\u00e3o.<\/p>\n

Eus\u00e9bio e seus seguidores tamb\u00e9m queriam a todo custo p\u00f4r fim \u00e0 disputa, n\u00e3o porque estivessem preocupados com a ortodoxia da doutrina, mas porque temiam que uma divis\u00e3o, \u00e0quela altura dos acontecimentos, fizesse a Igreja perder os privil\u00e9gios que Constantino estava promovendo.<\/p>\n

O pr\u00f3prio imperador, ao contr\u00e1rio do que muitos pensam, n\u00e3o tinha interesse algum em \u201cpromulgar\u201d uma doutrina trinit\u00e1ria para a Igreja. J\u00e1 fizemos men\u00e7\u00e3o no in\u00edcio de que, se este fosse o seu intento, n\u00e3o precisaria convocar um Conc\u00edlio para endossar o seu desejo. Bastava-lhe repetir o ato de quatro anos antes, quando promulgou o decreto dominical, e assinar um edito ordenando a todos que adorassem ao Deus-Tri\u00fano.<\/p>\n

Ademais, Constantino nem possu\u00eda conhecimento suficiente para se posicionar diante da controv\u00e9rsia que ocupava a teologia grega.40 <\/sup>Uma carta por ele enviada por meio do bispo H\u00f3sio de C\u00f3rdova confirma seu desconhecimento doutrin\u00e1rio a este respeito. Ali ele afirma que o problema que os bispos estavam discutindo acerca da natureza de Cristo era \u201cuma quest\u00e3o sem proveito\u201d.41<\/sup><\/p>\n

Foram os pr\u00f3prios bispos que o convenceram a convocar o Conc\u00edlio para resolver a quest\u00e3o e o partido trinitariano de Alexandre era, sem d\u00favida, o mais fraco de todos. Chega a ser um milagre que o texto de Nic\u00e9ia n\u00e3o tenha favorecido o arianismo porque estes, certamente, tinham mais recursos pol\u00edticos que Atan\u00e1sio e Alexandre. Tanto o \u00e9 que, embora os arianos fossem derrotados no Conc\u00edlio, os partid\u00e1rios de Eus\u00e9bio de Nicom\u00e9dia empreenderam uma verdadeira campanha, ap\u00f3s Nic\u00e9ia, para derrotar Atan\u00e1sio e restaurar \u00c1rio ao poder.<\/p>\n

O mais surpreendente \u00e9 que, protegido pelo imperador, \u00c1rio come\u00e7ou, de fato, a reconquistar seu poder que perdera e a influenciar a pol\u00edtica da igreja. Eus\u00e9bio, por sua vez, convenceu Constantino a enviar Atan\u00e1sio para o desterro e recolocar \u00c1rio em seu lugar como bispo de Alexandria \u2013 o que quase aconteceu, n\u00e3o fosse o falecimento de \u00c1rio na noite anterior \u00e0 cerim\u00f4nia de sua investidura, em 336 d.C. Assim, o plano era que o imperador convocasse um novo Conc\u00edlio corrigindo Nic\u00e9ia e desse ganho de causa aos arianos.<\/p>\n

Sob tais circunst\u00e2ncias, a f\u00e9 trinit\u00e1ria parecia, se n\u00e3o oficialmente renegada, praticamente condenada, principalmente depois que Constantino declarou seu desejo de ser batizado por Eus\u00e9bio de Nicom\u00e9dia num ritual antitrinitariano. A chamada f\u00e9 nicena s\u00f3 n\u00e3o chegou ao fim, porque Constantino acabou morrendo em 22 de maio de 337, poucos dias depois de ser batizado.<\/p>\n

Dois \u00faltimos aspectos ainda precisam ser esclarecidos: a grande discuss\u00e3o do Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia n\u00e3o era a Trindade em primeiro lugar, mas a natureza de Cristo em rela\u00e7\u00e3o ao Pai. Foi somente no credo de Atan\u00e1sio, produzido posteriormente, que o assunto \u201cTrindade\u201d apareceu de modo mais claro. Al\u00e9m disto, \u00e9 importante notar que o credo niceno n\u00e3o diz nada quanto ao Esp\u00edrito Santo ser ou n\u00e3o uma pessoa. A literatura antitrinit\u00e1ria se confunde na seq\u00fc\u00eancia hist\u00f3rica apresentando como \u201cCredo Ciceno\u201d o que na verdade seria o Credo Niceno-Constantinopolitano de 381, proclamado depois da morte de Constantino.42 <\/sup><\/p>\n

A Confiss\u00e3o Nicena de 325 se apresenta da seguinte maneira:<\/p>\n

Cremos em um s\u00f3 Deus, Pai onipotente, criador de todas as coisas vis\u00edveis e invis\u00edveis; e em um s\u00f3 Senhor Jesus cristo, o Filho de Deus gerado pelo Pai, unig\u00eanito, isto \u00e9, da subst\u00e2ncia do Pai, Deus de Deus, Luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, gerado n\u00e3o feito, de uma s\u00f3 subst\u00e2ncia com o Pai, pelo qual foram feitas todas as coisas, as que est\u00e3o no c\u00e9u e as que est\u00e3o na Terra; o qual, por n\u00f3s homens e por nossa salva\u00e7\u00e3o, desceu, e se encarnou e se fez homem e sofreu e ressuscitou ao terceiro dia, subiu ao c\u00e9u, e novamente deve vir e no Esp\u00edrito Santo.<\/p>\n

Segue-se a esta confiss\u00e3o os ju\u00edzos emitidos em rela\u00e7\u00e3o a alguns ensinos her\u00e9ticos:<\/p>\n

E a quantos dizem: \u201cEle era quando n\u00e3o era\u201d e \u201cantes de nascer, Ele n\u00e3o era\u201d ou que \u201cfoi feito do n\u00e3o existente\u201d; bem como a quantos alegam ser o Filho de Deus \u201cde outra subst\u00e2ncia ou ess\u00eancia\u201d ou \u201cfeito\u201d ou \u201cmut\u00e1vel\u201d ou \u201calter\u00e1vel\u201d a todos estes a igreja cat\u00f3lica e apost\u00f3lica anatematiza.43 <\/sup><\/p>\n

Conclus\u00e3o<\/b><\/h2>\n

Como se v\u00ea, a despeito das insatisfa\u00e7\u00f5es de alguns, prevaleceu em Nic\u00e9ia a ideia de formular um texto enxuto, sem muitas explica\u00e7\u00f5es e que agradasse ao m\u00e1ximo a todas as correntes. Se houve, portanto, uma atmosfera pol\u00edtica por detr\u00e1s do documento conciliar, esta foi a da neutralidade \u2013 desviar a quest\u00e3o para evitar mais divis\u00f5es. Constantino, \u00e9 bom lembrar, havia acabado de vencer Lic\u00ednio na luta pelo poder e sua prioridade era manter o imp\u00e9rio unido. Um cisma no cristianismo n\u00e3o seria bem-vindo naquele contexto. Da\u00ed o tom neutro sobre um assunto que, em princ\u00edpio, geraria muitas controv\u00e9rsias.<\/p>\n

No fim das reuni\u00f5es, restou aos arianos o inc\u00f4modo maior, pois, apesar das tentativas de neutralidade, o documento acabou ecoando uma antiga tradi\u00e7\u00e3o apost\u00f3lica que apresentava a Cristo como consubstancial ao Pai. E o mais curioso \u00e9 que Eus\u00e9bio e a maioria dos arianos assinaram o documento em conc\u00f3rdia com seu conte\u00fado. Apenas \u00c1rio e dois amigos se recusaram a faz\u00ea-lo.<\/p>\n

O sentido exato destas assinaturas \u00e9 dif\u00edcil precisar. Contudo, v\u00ea-se como infundada a declara\u00e7\u00e3o de que Constantino seria o Pai da doutrina trinit\u00e1ria usada para atrair o polite\u00edsmo para a Igreja. Pelo contr\u00e1rio, vinha de \u00c1rio e Eus\u00e9bio a tentativa de trazer uma doutrina polite\u00edsta para dentro do cristianismo, pois estes apresentavam a Cristo como um \u201csegundo\u201d deus, menor que o Pai, mas igualmente divino e que se assemelhava muito ao \u201cdemiurgo\u201d, ou deus menor do gnosticismo alexandrino. Em Nic\u00e9ia, em todo o caso, a Igreja pelo menos n\u00e3o tentou penetrar o mist\u00e9rio de Deus ou descrev\u00ea-lo como o fez \u00c1rio imbu\u00eddo pela ideia de transcend\u00eancia vinda da filosofia grega. Esta foi a verdadeira natureza da discuss\u00e3o que de modo nenhum pode ser tomada como a genitora de uma teologia trinit\u00e1ria.<\/p>\n


\n

Refer\u00eancias:<\/b><\/p>\n

1. Ennis Meier, \u201cO Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia, origem da cren\u00e7a em tr\u00eas deuses\u201d. <\/i>Dispon\u00edvel em <http:\/\/www.adventistas.com\/artigos\/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004.<\/p>\n

2. Ennis Meier, \u201cHist\u00f3ria: como Constantino tornou-se o pai do dogma cat\u00f3lico da Trindade\u201d. Dispon\u00edvel em <http:\/\/www.adventistas.com\/artigos\/html>. Acesso em 13 de janeiro de 2004. Grifo acrescentado. 3. Urias Smith, Daniel and Revelation \u2013 The Response of History to the Voice of Prophecy A Verse by Verse Study of These Important Books of the Bible <\/i>(Mountain View, CA: Pacific Press, 1918), 558ss.; Stephen N. Haskell, The Story of the Seer of Patmos <\/i>(Nashville, TN: Southern Publishing Association, 1977), 228-230. Haskell ainda estabelece o fato de que a Besta papal de Apocalipse 13 \u00e9 uma institu\u00e7\u00e3o que deveria surgir ap\u00f3s a divis\u00e3o de Roma em dez reinos, o que aconteceu apenas em 476 d.C.<\/p>\n

4. Ellen G. White, O Grande Conflito <\/i>(Tatu\u00ed, SP: Casa Publicadora Brasileira, 1996), 52, 438 e 439.<\/p>\n

5. Sobre a import\u00e2ncia da data de 538 d.C. para o entendimento adventista da profecia, ver A. Timm, \u201cA Import\u00e2ncia das datas de 508 e 538 d.C. para a supremacia papal\u201d, in Parousia <\/i>(2005:1), 7-18.<\/p>\n

6. Irm\u00e3o X, \u201cCristianismo \u00e9 ridicularizado pelos ateus por causa da cren\u00e7a na Trindade\u201d. Dispon\u00edvel em <http:\/\/www.arquivoxiasd.com.br\/ateu.htm>, acesso em 22 de setembro de 2005.<\/p>\n

7. Ricardo Nicotra, \u201cEu e o Pai Somos Um\u201d <\/i>(S\u00e3o Paulo: Minist\u00e9rio B\u00edblico Crist\u00e3o, 2004), 89.<\/p>\n

8. O decreto dominical constantiniano foi promulgado em mar\u00e7o de 321. Seu texto pode ser encontrado no Codex Justinianus<\/i>, Corpus J\u00faris Civilis Codicis <\/i>L\u00edber 3, tit. 12, par\u00e1grafo 3.<\/p>\n

9. Al\u00e9m do j\u00e1 mencionado erro de Nicotra, que atribui ao Conc\u00edlio a mudan\u00e7a do s\u00e1bado para o domingo (vide nota 7), autores como Dan Brown (autor do best seler O C\u00f3digo Da Vinci<\/i>) sugerem que foi o Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia que determinou <\/i>o C\u00e2non escritur\u00edstico, de modo que a B\u00edblia que temos hoje seria composta de acordo com o decreto constantiniano e n\u00e3o conforme um real des\u00edgnio de Deus.<\/p>\n

10. O t\u00edtulo \u201cpais da Igreja\u201d ser\u00e1 aqui usado em seu sentido t\u00e9cnico, conforme a ado\u00e7\u00e3o dos estudos de patr\u00edstica e n\u00e3o no sentido cat\u00f3lico de guardi\u00f5es absolutos da ortodoxia crist\u00e3.<\/p>\n

11. F. Ardusso, \u201cTradizione\u201d, in: G. Barbaglio, S. Dianich, Nuovo Dizionario di Teologia <\/i>(Roma: Paoline, 1979), 1772.<\/p>\n

12. Esta equipara\u00e7\u00e3o com a B\u00edblia n\u00e3o \u00e9 sempre expl\u00edcita, na literatura cat\u00f3lica, mas \u00e9 facilmente detectada nas entrelinhas do discurso. \u00c9 que o catolicismo, especialmente aquele posterior ao Vaticano II, parece ter compreendido a impopularidade teol\u00f3gica de tal afirma\u00e7\u00e3o diante do mundo protestante. A primeira reda\u00e7\u00e3o da Constitui\u00e7\u00e3o dogm\u00e1tica Dei Verbum<\/i>, que mantinha ainda a concep\u00e7\u00e3o cat\u00f3lica de duas fontes de revela\u00e7\u00e3o (B\u00edblia e Tradi\u00e7\u00e3o) recebeu uma severa interven\u00e7\u00e3o do bispo belga De Smedt que convenceu o comit\u00ea a reformular completamente o texto original. Ele declarou: \u201cSegundo o nosso parecer, o esquema atual falha notadamente em seu car\u00e1ter ecum\u00eanico. Ele n\u00e3o representa progresso para o encontro com n\u00e3o cat\u00f3licos, mas um empecilho; muito mais: \u00e9 prejudicial.\u201d Citado por Jo\u00e3o Batista Lib\u00e2nio, Teologia da Revela\u00e7\u00e3o a partir da Modernidade <\/i>(S\u00e3o Paulo: Loyola, 1992), 386. Para uma discuss\u00e3o pr\u00e9-conciliar sobre esta quest\u00e3o veja: Pierre Benoit, L\u2019actualit\u00e9 d\u00eas p\u00e8res de l\u2019Eglise <\/i>(Neuch\u00e2tel: \u00c9ditions Delachaux et Niestl\u00e9 S.A., 1961), 10-15; F. Cayr\u00e9, Patrologie et Histoire de la Theologie <\/i>(Paris: Descl\u00e9e & Cie, 1953), 3-7; J. Quasten, Iniciation aux peres de l\u2019Eglise <\/i>(Paris: Ed. Du Cerf, 1955), 4-8.<\/p>\n

13. Reynold Seeberg, Manual de Historia de las Doctrinas <\/i>(Buenos Aires: Casa Bautista de Publicaciones, 1967), 1: 29-37; J. N. D. Kelly, Early Christian Doctrines <\/i>(Londres: A&C Black, 1977), 21-37.<\/p>\n

14. Embora este termo seja tardio (s\u00e9culo XV), seu conceito j\u00e1 est\u00e1 presente nos primeiros escritos apolog\u00e9ticos do cristianismo. Cf. David W. Bercot, [ed.], A Dictionary of Early Christian Beliefs <\/i>(Peabody, MA: Hendrickson Publishers, 2003), xiii.<\/p>\n

15. Walter Bauer foi o pioneiro a chamar a aten\u00e7\u00e3o para a falta de unidade doutrin\u00e1ria nos primeiros s\u00e9culos do cristianismo (Orthodoxy and Heresy in Earliest Christianity, <\/i>eds. Robert A. Kraft, Gehard Krodel [Philadelphia: Fortress Press, 1971]). Mas hoje reconhece-se que, embora seu insight esteja correto, houve um exagero em suas conclus\u00f5es. Ele chega a afirmar que \u201cos hereges eram maioria em rela\u00e7\u00e3o aos ortodoxos\u201d (p. 194). A tend\u00eancia atual, conforme observa J. R. Flora \u2013 que fez uma tese sobre o trabalho de Bauer, \u00e9 que, a despeito da diversidade, havia uma unidade de pensamento nalguns pontos centrais que permitia configurar o que constitu\u00eda pensamento crist\u00e3o ou ensino dissidente. Cf. Jerry Rees Flora, A Critical Analysis of Walter Bauer\u2019s Theory of Early Christian Orthodoxy and Heresy, <\/i>PhD Dissertation (Louisville: Southern Baptist Theological Seminary, 1972).<\/p>\n

16. Compare, por exemplo, o uso do termo em Dion\u00edsio de Alexandria (Fragmentos extensos <\/i>V, 15) e Dion\u00edsio de Roma (Contra os sabelianos <\/i>1).<\/p>\n

17. A. Roberts., e J. Donaldson, [eds] Ante-Nicene Fathers <\/i>(New York: Charles Scribner\u2019s Sons, 1913), esta cole\u00e7\u00e3o antiga traz uma tradu\u00e7\u00e3o em ingl\u00eas dos textos patr\u00edsticos. H. Lubac, J. Danielou, et. alli, Sources Chr\u00e9tiennes <\/i>(Paris: les \u00e9dition du Cerf, 1941), esta \u00e9 a mais importante cole\u00e7\u00e3o de textos dos Pais da Igreja. Ela traz o texto original em grego, latim, copta etc. ladeado de uma tradu\u00e7\u00e3o para o franc\u00eas. Al\u00e9m disto apresenta as variantes que possam existir entre um e outro manuscrito. Salvo indica\u00e7\u00f5es em contr\u00e1rio, vamos seguir aqui a numera\u00e7\u00e3o da Ante Nicene Fathers<\/i>.<\/p>\n

18. Tertuliano, Sobre a Mod\u00e9stia, <\/i>XXI.<\/p>\n

19. Or\u00edgenes, Dos Princ\u00edpios<\/i>, I, 3,2. O original grego perdeu-se; o que nos resta s\u00e3o pequenas cita\u00e7\u00f5es e uma tradu\u00e7\u00e3o latina feita por Rufino. Assim, \u00e9 poss\u00edvel que Or\u00edgenes tenha utilizado o termo TriadoV que veremos nos textos de Te\u00f3filo de Antioquia.<\/p>\n

20. Te\u00f3filo, A Aut\u00f3lico<\/i>, XV<\/p>\n

21. Clemente, I Ep\u00edstola aos Cor\u00edntios, <\/i>XLVI.<\/p>\n

22. Eus\u00e9bio de Cesar\u00e9ia, Hist\u00f3ria Eclesi\u00e1stica, <\/i>III, 36, 5-11.<\/p>\n

23. In\u00e1cio, Ep\u00edstola aos Tralianos, <\/i>VII, (recens\u00e3o curta).<\/p>\n

24. Idem, (recens\u00e3o longa). Para uma revis\u00e3o bibliogr\u00e1fica do debate acerca das recens\u00f5es textuais de In\u00e1cio, com acentuada defesa da recens\u00e3o longa, veja Ch. Monier, O\u00f9 en est la question d\u2019Ignace d\u2019Antioche? Bilan d\u2019un si\u00e8cle de recherches 1870-1988, <\/i>in Aufstieg und Niedergang der r\u00f6mischen Welt <\/i>[Hildergard Temporini e W. Haase, organizadores] (Berlim e Nova Iorque: Walter de Gruyter & Co., 1993), II. 27.1, 359-484.<\/p>\n

25. Justino, I Apologia, <\/i>VI.<\/p>\n

26. Aten\u00e1goras, S\u00faplica pelos Crist\u00e3os<\/i>, X.<\/p>\n

27. Idem, XI.<\/p>\n

28. Idem, XXIII<\/p>\n

29. Ireneu, Contra Heresias, <\/i>V, XI, 2<\/p>\n

30. Idem, IV, XX, 2 e 3.<\/p>\n

31. Hip\u00f3lito: Fragmentos de Coment\u00e1rios, 10 <\/i>(ANF, vol. V, 174.)<\/p>\n

32. Hip\u00f3lito, Contra Noeto, <\/i>14.<\/p>\n

33. W. Walker, Hist\u00f3ria da Igreja Crist\u00e3 <\/i>(Rio de Janeiro: JUERP\/ASTE, 1980), 105.<\/p>\n

34. Cipriano, Ep\u00edstolas<\/i>, LXXII, 5.<\/p>\n

35. Idem.<\/p>\n

36. B\u00e1rbara Aland, et. alli., [eds], The Greek New Testament, Forth Revised Edition <\/i>(Stutgart: Deutsche Bibelgesellschaft \/United Bible Societies, 2001), 819.<\/p>\n

37. Cipriano, Tratados, <\/i>I, 6<\/p>\n

38. E. G. White, Ibid., p. 580.<\/p>\n

39. Idem, p. 56.<\/p>\n

40. Bernard Lohse, A F\u00e9 Crist\u00e3 Atrav\u00e9s dos Tempos <\/i>(S\u00e3o Leopoldo, RS: Sinodal, 1981), 57.<\/p>\n

41. Uma reprodu\u00e7\u00e3o da carta de Constantino pode ser encontrada em Eus\u00e9bio de Cesar\u00e9ia, Vida de Constantino, <\/i>II, 64-72.<\/p>\n

42. Um exemplo est\u00e1 no livro de Ricardo Nicotra, 88.<\/p>\n

43. O texto original em grego com uma antiga vers\u00e3o latina encontra-se em Henrique Dezinger e Clemente Bannwart, Enchiridion Symbolorum <\/i>\u2013 definitionum et declarationum de rebus fidei et morum Friburgo: Herder and Co., 1922, , p. 29 [credo 54].<\/p>\n


\n

Fonte: <\/b>Parousia<\/i>, ano 4, n\u00ba 2 (2\u00ba semestre de 2005), p. 31-39. Usado com permiss\u00e3o.\t\t<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

\u00a0 Trindade: um dogma de Constantino? \u00a0Rodrigo P. Silva, doutor em Teologia \u00a0Resumo: Grupos antitrinitarianos dissidentes do adventismo t\u00eam alegado que a doutrina da Trindade foi formulada no Conc\u00edlio de Nic\u00e9ia (325 d.C.), sob a influ\u00eancia do imperador romano Constantino. O presente artigo demonstra a exist\u00eancia de v\u00e1rias alus\u00f5es \u00e0 Trindade j\u00e1 nos escritos dos […]<\/p>\n","protected":false},"author":11,"featured_media":0,"parent":16139,"menu_order":0,"comment_status":"closed","ping_status":"open","template":"page-no-title-with-indent.php","meta":{"footnotes":""},"class_list":["post-2021","page","type-page","status-publish","hentry"],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/pages\/2021","targetHints":{"allow":["GET"]}}],"collection":[{"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/pages"}],"about":[{"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/page"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/11"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=2021"}],"version-history":[{"count":0,"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/pages\/2021\/revisions"}],"up":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/pages\/16139"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/centrowhite.org.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=2021"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}