“Ellen White me comoveu”

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Pergunta: Dr. Ramik, qual era o seu conhecimento acerca dos adventistas do sétimo dia, em geral, e de Ellen G. White em particular, antes de ter sido contratado para pesquisar os assuntos legais envolvendo o uso de fontes por Ellen White?

Dr. Ramik: Na verdade, o meu conhecimento acerca do assunto era muito limitado. Nossa empresa já havia realizado alguns trabalhos para os adventistas do sétimo dia, provavelmente há 50 anos, antes de ter-me associado a ela. E continuamos a representar os adventistas através dos anos, em diversos assuntos legais. Mas o meu conhecimento sobre eles como povo era mínimo. Tomei conhecimento a respeito de Ellen G. White de forma muito superficial quando uma vez ou outra surgia o seu nome em algum periódico, e, naturalmente, em novembro de 1980, quando extensa matéria foi publicada no jornal Washington Post, a qual, digamos, não era das mais favoráveis.

Pergunta: O senhor se recorda de como foi convidado a pesquisar o caso em questão?

Dr. Ramik: Sim. O Dr. Warren Johns, do Departamento Jurídico da Associação Geral, me chamou ao seu escritório para fazer-me algumas perguntas sobre plágio, pirataria literária, direitos autorais, e outros assuntos correlatos. Porém, não mencionou nomes. Como, porém, eu havia lido recentemente o artigo do Washington Post, perguntei ao Dr. Johns: “Tem isto a ver com o assunto que envolve Ellen G. White em sua Igreja?” Ele respondeu-me que sim, e a partir daí iniciamos o trabalho.

Pergunta: Tendo aceito o caso, que preparo o senhor fez, através de leituras, antes de investigar as leis referentes a assuntos literários?

Dr. Ramik: Obtive um exemplar de O Grande Conflito, o qual li de capa a capa. Consegui, também, cópias de outros trabalhos de Ellen White. Mantive contatos com Ron Graybill, da Associação Geral, e ele me forneceu uma grande quantidade de material, como o livro A Vida de Cristo, escrito por Hanna, entre outras coisas. Ele também me passou às mãos trabalhos preparados por críticos desde D.M. Canright até Walter Rea, bem como um grande número de artigos de autoria de adventistas, em defesa de Ellen White. Em meu relatório menciono muitos desses trabalhos que foram consultados.

Pergunta: Qual foi a sua reação após consultar todo esse material?

Dr. Ramik: Bem, esta é uma pergunta interessante. Comecei, creio, mantendo-me neutro quanto às acusações. Porém, de alguma forma, ao ler uma defesa de Ellen G. White escrita por um autor adventista, fiquei com a sensação de que ela não estava sendo muito bem defendida.

Pergunta: Que quer dizer com isso?

Dr. Ramik: Bem, fiquei pensando que Ellen White era, se é que posso usar a expressão usada por outros, uma pessoa “que usava material literário emprestado” de outras fontes. E que havia utilizado grande quantidade desse material com pouca honestidade. Em outras palavras – isto antes de eu haver pesquisado os seus próprios escritos – fiquei, de fato, predisposto a crer que ela era culpada de plágio, como havia sugerido seu último crítico,Walter Rea.

Pergunta: Após iniciar o exame dos escritos de Ellen White, essa impressão negativa foi reforçada ou, de alguma forma, se alterou?

Dr. Ramik: Gradualmente fiz um giro de 180 graus em meus conceitos. Constatei que as acusações simplesmente não eram verdadeiras. Porém, isso eu concluí lendo os seus próprios escritos; não fui convencido por aquilo que diziam os que a acusavam de plágio, tampouco pelas afirmações daqueles que a defendiam. Tive que ler os seus escritos e depois mudar a opinião que havia formado. Isto me custou mais de 300 horas de leitura, incluindo, naturalmente, a pesquisa da literatura contemporânea de Ellen White.

Pergunta: Então foi através da leitura das obras de Ellen White que o senhor mudou a sua maneira de pensar?

Dr. Ramik: Foi pela leitura das mensagens contidas nos seus escritos que mudei o meu modo de pensar. E creio que aqui cabe uma grande distinção que deve ser feita.

Pergunta: Poderia descrever qual é essa distinção?

Dr. Ramik: Creio que os críticos estão totalmente enganados ao enfocar os escritos de Ellen White, em vez de considerar as mensagens contidas nesses escritos.

Pergunta: O que encontrou em suas mensagens, Dr. Ramik? De que maneira elas o impressionaram?

Dr. Ramik: Ellen White me comoveu! Com toda franqueza, ela me comoveu. Sou católico romano; mas, católico, protestante o que quer que fosse, diria que ela me comoveu. E creio que as mensagens comoveriam a qualquer um, a menos que se tratasse de alguém extremamente preconceituoso e intransigente.

Pergunta: Poderia explicar o que quer dizer com isso?

Dr. Ramik: Uma pessoa pode andar por aí praticando boas obras e dizendo de si para  si (e, talvez também a outros): “Sou uma pessoa excepcional”. E depois de algum tempo chega a pensar que isto efetivamente representa a realidade. Porém, quanto tempo faz que pôde contemplar a si mesmo e descobrir o que de fato era? Há uma grande quantidade de coisas que Ellen G. White escreveu, cuja leitura feita com seriedade e atenção, pode fazer com que a pessoa olhe honestamente para o seu próprio interior. E se o faz, o verdadeiro eu vem à tona. Creio que conheço hoje um pouco melhor o verdadeiro Vincent Ramik do que antes de começar a ler as mensagens de Ellen G. White, e não simplesmente os seus escritos.

Pergunta: Esta reação o surpreendeu?

Dr. Ramik: Creio que se eu dissesse que fiquei “agradavelmente surpreso” seria dizer muito pouco. Francamente, penso que concluo este trabalho tendo recebido muito mais do que dei. E isto apenas em função de suas mensagens. É simplesmente a influência recebida ao se ler alguma coisa, possibilitando uma crença mais firme e fundamentada naquilo em que no passado, se acreditava um pouco menos. Eu não me considero uma pessoa religiosa; não sou católico romano praticante. Nasci católico; mas minha esposa é protestante. Um de meus filhos foi batizado como católico enquanto o outro se tornou protestante. Penso que poderia dizer que somos uma família “ecumênica”! Essencialmente, minha visão das coisas em geral, incluindo este trabalho e o meu dia-a-dia, baseia-se em buscar compreender a vontade de Deus para comigo; e espero obter sabedoria e coragem para cumpri-la. Eu tenho um Deus, o qual procuro entender. Ellen White me ajudou a compreendê-Lo um pouco melhor. Penso que hoje sou uma pessoa melhor do que antes de haver começado esta tarefa.

Pergunta: E a mensagem?

Dr. Ramik: A mensagem é o ponto crucial. O crítico lê uma determinada frase e pode não perceber o seu significado. Pode também, e frequentemente o faz, tirá-la do contexto. Porém, que se leia a mensagem completa. Qual é a intenção da autora? O que é que ela realmente está dizendo? De onde provêm as palavras, nesse caso, não é o mais importante. Qual é a mensagem que está por trás das simples palavras? Se a mensagem é relegada a um segundo plano, então a própria Bíblia não mereceria ser lida. Isto no caso de se atribuir importância apenas às palavras.

Pergunta: Qual dos livros de Ellen G. White o senhor achou mais útil?

Dr. Ramik: O único livro que li inteiramente foi O Grande Conflito. Antes, porém, de completar a minha pesquisa, li muitos trechos de outros livros de sua autoria. Não creio, todavia, que seja tão importante definir qual de seus livros é o mais útil; penso que qualquer uma das obras pode ser útil para todos os fins a que se propõe o leitor.

Pergunta: Não lhe causou certa preocupação o que algumas pessoas disseram quanto ao fato de ela haver tomado muito material literário emprestado de outros escritores?

Dr. Ramik: Dizer quarenta ou quatrocentos, francamente, é algo muito imaterial. Não faria nenhuma diferença para mim ainda que ela tivesse tomado tudo emprestado a outros autores.

Pergunta: Que dizer então do plágio? Ele de fato não existe neste caso?

Dr. Ramik: O “plágio” não consta das leis. Os delitos literários referem-se à infração dos direitos autorais. O roubo literário não é algo que possa ser provado facilmente. Não se pode, ao ler os escritos de alguém, encontrar uma palavra, uma frase, um período, e dizer: “Aqui está! Encontrei. Isto pertence a outro escritor.” Permita-me explicar melhor: Na noite passada reli o meu parecer legal sobre este caso, e descobri que havia utilizado o adjetivo “prodigiosa” ao me referir a Ellen White como escritora. Por coincidência, li também ontem à noite um livro que me foi emprestado, chamado The Vision Bold. Esse livro falava de Ellen White como “prodigiosa” escritora. Quando cheguei aqui hoje à tarde, alguém referiu-se a ela como “prodigiosa” escritora. Bem, eu não usei esse termo porque outros o usaram; utilizei-o porque é uma palavra que emprego normalmente. Entretanto, os críticos tomam esse tipo de coisas e os transformam em verdadeiras montanhas que são, porém, inconsistentes. Outro aspecto que geralmente os críticos ignoram é: as declarações supostamente plagiadas de outro escritor eram originalmente deste, ou teria também este se utilizado consciente ou inconscientemente de matérias de um outro autor? Falemos agora de Walter Rea. Ele leu as obras de Ellen G. White e afirmou: encontrei uma frase aqui, um parágrafo ali, que pertenceram a outros escritores. Bem, isso não prova nada; é apenas uma suposição. Creio que o primeiro passo para se fazer uma crítica correta e consciente é através do exame da obra original – que pode ser Virgílio, Homero, ou mesmo a Bíblia. Porém, como saber se esta é realmente original, ou se o seu autor também não se valeu de outras fontes mais antigas? Não afirmou Salomão que “não há nada novo debaixo do Sol”?

Pergunta: Em seu parecer jurídico, o senhor assinala que muitas das obras, as quais Ellen White foi acusada de ter plagiado ou transcrito trechos das mesmas, em verdade, nem estavam sob a proteção dos direitos autorais, sendo portanto de domínio público. Assegura também, que ainda que tais obras tivessem os seus direitos autorais devidamente registrados, o emprego que Ellen G. White fez do material nelas contido está cuidadosamente limitado dentro de parâmetros “honestos”, como definiam as leis da época. Um crítico contemporâneo, entretanto, levanta a questão da ética e propriedade. Foi moral e ético o fato de Ellen G. White ter se utilizado abundantemente de outras fontes literárias sem ao menos fazer menção das mesmas? Poderia falar um pouco sobre a ética?

Dr. Ramik: Certamente. Walter Rea disse publicamente (ouvi uma gravação de sua exposição do assunto e li cuidadosamente o texto transcrito) que o aspecto “moral”  não pode ser apontado dentro de uma definição puramente legal de plágio. Por outro lado, ele ataca Ellen White no terreno moral, ao referir-se à questão ética do uso de materiais alheios. Pois bem, em primeiro lugar ele está totalmente equivocado ao dizer que não há elementos morais em questões de plágio. H. N. Paull, autor de Literary Ethics, escrito por volta de 1928, é ainda hoje reconhecido como autoridade no assunto. A propósito, embora ele nunca tenha definido o “plágio” em seu livro (porque, como disse antes, o plágio em si não constitui um delito), contrasta o plágio com a pirataria. Ao pirata literário não importa que o identifiquem; porém, aquele que comete plágio se preocupa com a possibilidade de vir a ser descoberto. (E ainda se fala que não há elementos morais envolvidos no plágio!) Ora, acusar Ellen G. White de ter plagiado Life of Paul de Conybeare & Howson, livro não protegido por direitos autorais, é um absurdo, pela simples razão de haver ela recomendado publicamente que os seus leitores adquirissem o referido livro e o lessem por si mesmos.

Pergunta: Mas o senhor poderia ainda comentar se Ellen G. White se envolveu em problema ético ao utilizar materiais como citações, paráfrases, ideias, etc., de outros autores, sem mencionar as fontes publicamente?

Dr. Ramik: Não havia nenhuma razão que impedisse Ellen G. White de usar ideias de outros para expressar os pensamentos que ela queria transmitir. Tampouco é racional esperar que algum escritor, ao abordar temas teológicos, por exemplo, escrevendo sobre um assunto abstrato, se abstenha de investigar o que outros disseram antes – inclusive os seus contemporâneos – em relação ao tema. Em meados do século 19 (justamente quando Ellen White estava iniciando o seu trabalho como escritora, em 1845), no caso jurídico que envolveu Emerson v. Davies, a circunscrição judicial de Massachusetts exonerou um escritor que havia utilizado as palavras e as ideias do outro em sua própria composição. Com efeito, o juiz, naquele caso, declarou que somente os tolos tentam fazer novamente aquilo que já havia sido bem feito no passado; realmente, ninguém pode produzir uma linguagem exclusivamente sua. Em outras palavras, as palavras existem há anos e anos. O ponto crucial encontra-se na sua combinação, e qual o efeito que se deseja produzir por seu intermédio. Todavia, se alguém no passado, de acordo com a afirmação do referido juiz, escreveu algo esplêndido, admirável – algo que é histórico, da experiência comum e cotidiana do ser humano – por que perder tempo tentando inutilmente achar uma maneira melhor de dizer aquilo que já foi dito de forma perfeita? No uso dessa espécie de escritos nada há de condenável ou incongruente. Ao contrário, a pessoa sensível, sábia, é aquela que usa aquilo que já foi feito no passado, quando bem feito. Em alguma parte de nossos arquivos legais há uma inscrição sobre uma porta que diz: “O passado é prólogo”. Acredito que isso se aplica também à produção literária. Ellen White utilizou o que fora escrito por outros; porém da maneira como o fez, transformou e enriqueceu os textos de forma tão ética quanto legal.

Pergunta: Há ainda algo que queira acrescentar sobre este assunto fascinante?

Dr. Ramik: Sim. Creio que foi Warren Johns quem fez uma analogia, na ocasião em que discutíamos este caso. A situação se assemelha à de um construtor que deseja edificar uma casa. Há certos elementos básicos, essenciais, como janelas, portas, ladrilhos, etc., que tem à sua disposição. Há também, diversos projetos criados anteriormente por outros construtores através de diferentes combinações dos mesmos elementos básicos. O construtor reúne esses elementos e os utiliza. Sem dúvida, o projeto da casa, sua aparência final, seu tamanho, estilo e outros detalhes são patrimônio exclusivo do construtor (ou projetista). Ele coloca o seu próprio selo no produto final – o projeto é de sua autoria e lhe pertence. (Ele não precisa dizer que este ladrilho veio daqui, a janela dali, a porta de outro lugar.) Creio que foi desta forma que Ellen G. White utilizou palavras, frases, sentenças, parágrafos, e até mesmo páginas de obras de autores que a antecederam. Ela permaneceu dentro dos limites legais do “uso honesto”, e ao mesmo tempo criou algo substancialmente melhor (e ainda mais belo) do que uma simples recompilação de trechos já produzidos. Penso que é trágico os críticos não reconhecerem esse aspecto. Uma pergunta que me tem sido feita é se eu creio que Ellen White foi “inspirada”. Bem, “inspiração” é uma palavra teológica, não jurídica; e eu me sinto mais à vontade com as expressões legais do que com termos teológicos. Eu não sei se ela foi inspirada, na acepção teológica. Acredito que ela foi altamente motivada. E se essa motivação não proveio de Deus, não posso compreender de quem teria emanado. Porém, essa impressão eu a recebi apenas através da leitura de seus escritos. Eu não estava presente quando ela escreveu, e suponho que tampouco os seus críticos. Tenho a sensação de que a menos que a pessoa tenha uma forma especial de “motivação”, não pode simplesmente exteriorizar por meio de palavras aquilo que recebi por intermédio de seus escritos. Agora, eu, pessoalmente, não tenho nada contra a ideia de que Deus a tenha inspirado a escolher algum trecho de um determinado livro. E se Deus a inspirou a selecionar algo que já havia sido escrito antes talvez de forma melhor do que ela mesma poderia fazê-lo, qual é o problema? Realmente, numa análise final, penso que tudo se resume em uma questão de fé. E no que me diz respeito, não tenho problemas em aceitar o que ela escreveu como um assunto de fé. O enfoque principal de tudo é: o que realmente conta é a mensagem de Ellen G. White, e não meramente a mecânica da escrita – palavras, cláusulas, frases. Os teólogos, segundo estou informado, distinguem aqui a inspiração verbal e a inspiração do pensamento. A maioria dos críticos não compreende esse aspecto. E isso é lamentável. Pessoalmente, fui tocado, profundamente tocado, por esses escritos. Fui transformado por eles. E desejo que os críticos possam descobrir isso.

Pergunta: Dr. Ramik, como o senhor resumiria o caso jurídico envolvendo Ellen G.White em acusações de plágio e infração da lei dos direitos autorais?

Dr. Ramik: Se eu tivesse que atuar em semelhante caso, preferiria atuar na sua defesa e não na promotoria. Simplesmente as acusações são inconsistentes. Não se configura aí um caso jurídico.


Fonte: Entrevista extraída da Revista Adventista, junho de 1982, p. 7-10.


PDF: Entrevista com o Dr. Ramik